100=28-6
29.04.2017 às 9h00
Antes das eleições, Donald Trump tinha firmado um “contrato” com os eleitores, um “plano de ação para os primeiros 100 dias”. Com o prazo a chegar ao fim este sábado, mudou de discurso, considerando-o um “marco ridículo” e dizendo que “não tem pressa” para cumprir as suas principais promessas, como “revogar e substituir o Obamacare” ou conseguir fundos federais para construir o muro na fronteira com o México
Quando faltava um mês para a ida às urnas nos Estados Unidos, depois de uma das corridas eleitorais mais renhidas e divisivas do país, Donald J. Trump assinou um “contrato com o eleitor americano” no qual fazia 28 propostas concretas para “acabar com a corrupção e os jogos de interesses em Washington”, para “proteger os trabalhadores americanos” e para “restaurar a segurança e o Estado de Direito”.
Foi o que classificou de um “plano de ação para os primeiros 100 dias” da sua Administração, caso vencesse. O relógio começou a contar a 20 de janeiro, quando tomou posse, com um discurso em que prometeu salvar os americanos da “carnificina” em que alegadamente estiveram mergulhados até ele aparecer, entregues a uma espiral de crimes violentos, culpa dos imigrantes, e a uma profunda crise económica, culpa de países como a China, essa “grande manipuladora de divisas”.
Dessas 28 propostas Trump cumpriu seis, entre elas assinar um decreto para tirar os EUA do Acordo Transpacífico (TPP), em linha com a sua retórica de campanha para reavivar o protecionismo económico e “fazer a América grande outra vez”. E com o centésimo dia à espreita, há uma semana o magnata tornado 45.º Presidente da América gozou com o prazo que ele próprio definiu — no Twitter, a sua plataforma de eleição. “Por mais coisas que eu alcance durante o ridículo marco dos primeiros 100 dias — e já alcancei muito — os media vão matar!!” Horas depois, voltou a desvalorizar a efeméride. “A próxima semana não interessa.”
“Mistura familiar de ruído e cortinas de fumo”
Os críticos dizem que interessa e que não são só os seus opositores que estão interessados. Senão veja-se a proposta de reforma tributária que o seu governo acabou de apresentar, para baixar os impostos às empresas e aos cidadãos sem aumentar o défice nem a dívida (o que especialistas dizem ser impossível) — no que os analistas leram como uma tentativa desesperada de alcançar pelo menos uma grande vitória antes de completar os 100 dias.
“O Presidente Donald Trump vive para superlativos — quer o maior e o melhor — pelo que não é surpreendente que já esteja a ficar exasperado com as revisões pouco abonatórias dos seus primeiros 100 dias no poder”, escreveu a CNN na segunda-feira, assim que a Administração anunciou que ia apresentar a prometida e “histórica” reforma fiscal. “Trump está a aproximar-se do primeiro marco simbólico da sua presidência no sábado com uma mistura familiar de ruído e cortinas de fumo, destinada a disfarçar a realidade de que produziu uma das estreias na presidência menos prolíficas da História moderna.”
Para o canal, o negacionismo foi “um passo clássico” vindo de quem veio — “adiantar-se às más notícias usando críticas à imprensa como manobra de diversão e enevoando a linha que separa a verdade da falsidade para escapar a graves danos políticos”. Pouco surpreendente, ditaram vários analistas, vindo de um homem que continua em guerra com os jornalistas e cuja administração, na figura da conselheira Kellyanne Conway, cunhou a já famosa expressão “factos alternativos” para se proteger de verdades incómodas.
Ao contrário do que declarou, esta semana tem particular interesse, e não apenas por causa da efeméride de sábado. Depois do interregno da Páscoa, o Congresso voltou ao trabalho na segunda-feira e, até quinta-feira, havia receios de que esta sexta o governo Trump fosse ficar sem dinheiro e se visse forçado a suspender todos os serviços públicos não essenciais. Em causa estão disputas sobre o projeto-lei para garantir o financiamento da administração no ano fiscal corrente, antevendo-se que o Presidente ia manter o braço-de-ferro para garantir que o pacote previa fundos parciais para pagar a construção do muro na fronteira com o México — mesmo que isso se traduzisse no encerramento temporário do funcionamento do governo. Mas afinal, como indicou, esse projeto pode esperar, embora seja para avançar e para, em última instância, ser pago pelos mexicanos.
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Ao final de 100 dias, nem muro nem a promessa de “revogar e substituir o Obamacare”. Há alguns dias, Trump veio dizer que “não há particular pressa” em acabar com o programa de cuidados de saúde implementado por Barack Obama e que “não interessa se isso acontece na próxima semana” ou depois do “marco ridículo”. Pressa é contudo o que têm aos republicanos, que prometeram para breve uma nova proposta para substituir o Affordable Care Act, depois de a primeira ter sido chumbada pela minoria democrata com a ajuda de alguns senadores do partido que hoje controla as duas câmaras do Congresso e a Casa Branca — e que, depois de muita resistência e lutas internas, abraçou o seu Presidente e passou estes 100 dias a tentar evitar que o barco-Trump ficasse à deriva.
À deriva é como alguns dirão que o governo andou nos últimos três meses, marcados por uma série de inversões de marcha em relação às suas promessas de campanha. No seu “contrato com o eleitor americano”, o empresário garantia que ia “ordenar ao secretário do Tesouro que classificasse a China como manipuladora de divisas” assim que tomasse posse; esta sexta-feira reforçou os laivos de namoro com o Presidente chinês, Xi Jinping, que teve a oportunidade de “ficar a conhecer muito bem” e que é simplesmente “um homem muito bom” que “ama o seu país”.
Prometia acabar com o Obamacare; agora já não é uma prioridade. Prometia acabar com a imigração ilegal; os tribunais suspenderam os dois decretos que assinou para proibir a entrada de cidadãos de sete países de maioria muçulmana e para suspender o acolhimento de refugiados. Prometia cortar os fundos às cidades-santuário, onde os imigrantes clandestinos estão protegidos de deportação; os tribunais voltaram a entrar em ação para lhe estragarem mais esse plano. De notar que, segundo uma análise do “Washington Post”, Trump é o Presidente que “mais decretos assinou” desde Harry Truman (1945-1953). “Mas o que é que alcançou com isso?”
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Bombardeamentos em três países
Durante a campanha, também prometeu que, ao seu leme, os Estados Unidos iam deixar de se imiscuir nos assuntos de outros países, renegando a posição das anteriores administrações em matéria de política externa. E foi talvez nesse ponto que mais surpreendeu. Depois de declarar que a NATO “já não é obsoleta”, Trump bombardeou três países sem uma estratégia concreta definida. Primeiro ordenou uma operação especial no Iémen, que resultou em 12 mortos, incluindo uma menina americana, e que até membros do Partido Republicano classificaram como um “falhanço”.
Depois, ordenou o primeiro ataque dos EUA contra as forças de Bashar al-Assad na Síria desde o início da guerra civil em 2011 — no que uns viram como “uma mensagem a outras nações” que estão a pisar os calos da Administração (em particular a Coreia do Norte) e que outros disseram ser uma tentativa de enterrar as suspeitas de conluio com a Rússia, grande aliada de Assad.
Logo a seguir, recorreu à “mãe de todas as bombas” para destruir uma rede de túneis do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) no Afeganistão — foi a primeira vez que as forças armadas americanas usaram a sua mais poderosa arma convencional, 11 toneladas de explosivos largados de um avião sobre a província de Nangarhar, na fronteira com o Paquistão.
As promessas cumpridas
Entretanto, esta semana também pareceu moderar o tom em relação a Pyongyang depois de semanas de tensões escaldantes e de trocas de ameaças com o regime de Kim Jong-un por causa do seu programa nuclear e de mísseis balísticos. Ainda assim, avisou numa entrevista à Reuters dada esta quinta-feira que vai ser “difícil” resolver a questão pela via diplomática e que não estamos a salvo de um “grande, grande conflito” entre as potências nucleares.
Há a sublinhar que algumas das suas promessas foram cumpridas, entre elas dar início à renegociação do NAFTA com o México e o Canadá, tirar os EUA do acordo de comércio livre com o Pacífico, reavivar os controversos oleodutos Keystone XL e Dakota Access e congelar temporariamente as contratações federais. Mas na balança de vitórias e derrotas, a sua administração sai a perder.
Mesmo assim, Trump mantém a estratégia de “ruído e cortinas de fumo” referida pela CNN. “Nenhuma administração conseguiu alcançar tantas coisas nos primeiros 90 dias”, declarou na semana passada. É mentira, gritaram os críticos no mundo virtual, depois de um primeiro mês marcado por inúmeros protestos físicos em várias cidades do país contra a sua presidência e a sua retórica anti-imigração.
Apesar dos falhanços, e de sucessivas sondagens a apontarem-lhe uma das mais baixas taxas de popularidade de que há memória em início de mandato, apenas 6% dos eleitores que votaram em Trump dizem estar arrependidos. Contra esses, milhões continuam a insurgir-se diariamente na internet, aproveitando cada gafe e cada delação de fontes da Casa Branca para manter a resistência em chamas.
Entre as últimas gafes conta-se o postal que Trump publicou na quarta-feira no Twitter para dar os parabéns “à primeira-dama Melania”, que nesse dia cumpriu 47 anos de vida.
O problema não foi a mensagem nem tão pouco o facto de a eslovena continuar a viver em Nova Iorque com o filho, custando milhões por semana aos contribuintes, e demonstrando pouca afeição marido quando são fotografados lado a lado (a internet não perdoa uma). O problema foi a bandeira dos EUA colada no postal, onde em vez das 50 estrelas brancas a representar os 50 estados dos EUA estavam apenas 39 — uma bandeira alternativa que, ao que parece, já foi usada noutras publicações oficiais da presidência. O que é feito dos outros onze?
O homem que resistiu a tudo
O que parece ter amainado nestes primeiros 100 dias foi a crença de que o empresário, que continua sem divulgar as suas declarações de rendimentos e que continua a passar mais tempo a jogar golfe do que em reuniões de segurança, não ia sobreviver nem 100 dias no cargo.
Nem a Casa Branca em desalinho, dividida entre a barricada do genro Jared Kushner e a fação dos amigos da “direita alternativa” (vulgo extrema-direita) liderada por Steve Bannon; nem a despromoção de Bannon do Conselho de Segurança Nacional e o despedimento do diretor desse conselho, Michael Flynn, por causa de contactos ilegais com o embaixador russo em Washington; nem as nomeações de familiares, como a filha Ivanka, para cargos na Administração; nem indicações vindas da comunidade de psiquiatria sobre Trump não ter condições mentais para governar; nem esse mistério maior que é a suspeita proximidade do círculo de Trump ao governo de Vladimir Putin (ainda a ser escrutinada); nada foi suficiente para o destituir.
Oito razões para Trump ser substituído por Pence
Alguns analistas continuam a antever que isso só vai acontecer quando o Partido Republicano perceber que tem mais a perder do que a ganhar nas eleições intercalares de 2018 se Trump continuar na Casa Branca. Outros dizem que a questão vai para lá do partidarismo e que a destituição é inevitável — caso de Allan Lichtman, o professor universitário que previu corretamente o desfecho de quase todas as eleições americanas desde 1984, incluindo a vitória de Trump, e que acabou de lançar o livro “The Case for Impeachment”, onde apresenta as oito razões que vão levá-lo a ser substituído pelo seu vice-presidente, Mike Pence.
A “New Yorker”, por sua vez, recorreu esta quinta-feira ao “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Marquez, para escrever o futuro, mesmo que ficcionado, numa analogia entre o coronel Buendía diante do pelotão de fuzilamento e o Presidente Trump diante de um Congresso virado contra ele. “Muitos meses mais tarde, ao enfrentar a comissão de destituição, o Presidente Donald Trump lembrar-se-ia daquela tarde distante em que Jeff Sessions o levou a descobrir o ICE [o serviço de estrangeiros e fronteiras dos EUA]. O mundo era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nomes e, para as referir, era preciso apontá-las com o dedo. […] ‘Vamos conseguir ganhar tantas coisas’, disse finalmente. A reivindicação corajosa de um homem que nunca conseguiu sequer conquistar o amor do seu próprio pai.”